Archive for março 24, 2009

Dona Benedita e os pontos de crochê de Brotas

crocheA disputa era desigual, e até mesmo injusta. O sol franzino disputava espaço no céu com um aglomerado de nuvens. Porém, mesmo com o seu intenso calor, a luz solar não conseguiu ultrapassar a grande muralha de nuvens acinzentadas da capital paulista. O que realmente chamava a atenção eram as duas maritacas que dançavam e soavam o som da vida, no meio da poluição da cidade. Foi assim que começou o penúltimo dia da décima segunda edição do Revelando São Paulo. O festival realizado no Parque da Água Branca transformou o lugar no ponto de encontro das culturas tradicionais do estado.
Diversas atrações foram oferecidas, como, comidas típicas, Folia de Reis, bonecos gigantes, violeiros, congadas, romarias, entre outras. O artesanato exibido pelas centenas de cidades apresentadas chamou a minha atenção. Eram brinquedos de madeira, panelas de barro, miniaturas, pinturas, esculturas de cipó e vime, artesões de todos os tipos e gostos.
Fui acompanhado de uma colega, e como toda mulher que se preza, ao ver uma bolsa, pára. De longe ela observou as lindas bolsas feitas de crochê. Ficou atônita quando percebeu o capricho e a qualidade com que aquele produto era feito. Enquanto olhávamos, uma senhora veio nos atender: “Vamos levar uma bolsa hoje, minha querida? Qualquer coisa estou aqui!”, proferiu ela à minha amiga. Aproveitamos, e perguntamos se dava muito trabalho fazer aquelas bolsas. Ela disse que dava sim, mas que era prazeroso. Quando me dei conta já estávamos tendo uma longa conversa. Falamos não só de artesanato, mas também de assuntos, como, política, educação, juventude e valores morais.
Dona Benedita Helena é professora aposentada da rede pública de ensino. Pequena, branca, óculos arredondados, cabelos alvos e curtos, vestia uma camiseta e uma calça preta, destacando a clareza da sua alma. “Até hoje eu trabalho! Não consigo ficar parada. Dirijo e nunca sofri um acidente”, comenta, ostentando um orgulho radiante. Aos sessenta e nove anos, caminha todos os dias e tem uma mãe de noventa e dois anos viva. “Minha mãe ainda me trata como uma criança”, disse. Fica triste ao comentar do descaso dado pelos governantes ao Revelando São Paulo. Segundo ela, no ano passado tentaram acabar com o evento, porém um abaixo assinado realizado, reuniu mais de três mil assinaturas e impediu que isso acontecesse. E ainda complementa dizendo que “não há propaganda desse lindo evento”. Porém a tristeza desaparece de seu rosto ao explicar que foi a escolhida para representar os vários artesões de Brotas.
Perguntei se com artesanato dava para ganhar dinheiro. “O artesão não trabalha por lucro. Não pode fazer conta com o lápis, tem que fazer com amor”, respondeu ela. Quando percebi, já fazia mais de uma hora que estávamos conversando, e ainda tínhamos muito para conhecer. Nos despedimos da dona Benedita, com a certeza de que logo nos encontraríamos. Afinal, além de ter tido uma enriquecedora conversa, conheci e ganhei uma amiga inesquecível.

Reencontro no Revelando São Paulo 2009

CHARGE…

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Os Estatutos do Homem (Ato Institucional Permanente)

Thiago de Mello

Artigo I
Fica decretado que agora vale a verdade.
agora vale a vida,
e de mãos dadas,
marcharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo único:
O homem, confiará no homem
como um menino confia em outro menino.

Artigo V
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.

Artigo VI
Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Artigo VII
Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII
Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha
sempre o quente sabor da ternura.

Artigo X
Fica permitido a qualquer pessoa,
qualquer hora da vida,
uso do traje branco.

Artigo XI
Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo,
muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII
Decreta-se que nada será obrigado
nem proibido,
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.

Parágrafo único:
Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.

Artigo XIII
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.

Artigo Final.
Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.

Santiago do Chile, abril de 1964

CHARGE…

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CHARGE…

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A mais famosa de todas as marquises

marquise1 Não passava das oito e meia da manhã. O sol tímido, ainda não irradiava sua luz com intensidade. Sentado na beira do Jardim das Esculturas, em frente à redoma de vidro que abriga a gigantesca aranha de bronze de Louise Bourgeois, retiro da mochila o clássico de George Orwell, “1984”. Ainda estou na parte que Wintson começa a escrever suas idéias sobre a política do Grande Irmão. É uma ótima opção de leitura. Entretanto, não consigo sequer trocar de página. Fico imaginando tudo o que essa enorme laje de concreto já presenciou. A Marquise Senador José Ermírio de Moraes fica no Parque do Ibirapuera , e lá está desde a criação do espaço. A obra foi projetada pelo arquiteto Oscar Niemeyer em comemoração ao quarto centenário da cidade de São Paulo. E está localizada em frente o Museu de Arte Moderna da cidade, o MAM.

Os camelôs terminam de montar suas bancas, que estão amparadas nas espessas colunas da marquise. De repente, vejo uma senhora gritando em direção a um deles. Ela não falava português, o que era notório devido sua pronúncia nada peculiar. Queria comprar um pacote de biscoitos salgados por um real. Atencioso, o vendedor entregou-lhe instantaneamente o produto com uma das mãos e recebeu o dinheiro com a outra. “Gracias”, respondeu a senhora. Que por sinal usava um notável chapelão. Alguns minutos depois, uma jovem que transportava no bagageiro de sua bicicleta uma imensa pedra de gelo, pergunta ao mesmo vendedor: “Vai gelo hoje?” Ele aceita, e com a ajuda de um guri ela retira a enorme pedra do bagageiro, jogando-a na caixa de isopor.

Na minha frente, um grupo de quatro mulheres ouve e executa atentamente as ordens da “personal trainer”. Três homens chegam. Suas camisas molhadas de suor comprovam que a corrida foi longa. “Até que vieram em um ritmo bom”, disse a personal em direção aos três. Um pouco ao lado um outro grupo faz seus exercícios na esteira, flexões e abdominais ritmadas que os envolvem.

Observo que outro vendedor de gelo pára perto do camelô e protesta: “É só a mocinha vim mais cedo que você não compra comigo”, sem saber o que dizer, o ambulante balança os ombros calado.

Um pequeno grupo começa a surgir ao meu lado. São fotógrafos que aguardam os modelos para produção de um ensaio fotográfico, que vão chegando um a um. O primeiro modelo é moreno, rechonchudo e é dotado com belos olhos castanhos. A segunda é uma linda mocinha de cabelos aloirados. E a última, é uma oriental com olhos cintilantes. A única coisa em comum entre os três, era que, nenhum deles tinham mais do que dois anos de idade. Todos reunidos? Não! Faltava a estrela do ensaio, a Paty, uma enorme São Bernado que pesava mais de sessenta quilos e que era maior do que a sua dona. Com dois laços escarlates na cabeça , ela desfilava como se estivesse em uma passarela, chamando a atenção de todos com sua beleza. Impaciente, Paty andava de um lado para o outro reconhecendo o território. Até que ela se aproximou e ficou ao meu lado, como estava sentado deu para sentir sua respiração cadenciada bater no meu rosto. Uma sensação indescritível.

“Ô da bicicleta! Tem criança aqui.” Berrou um homem a um menino que pedalava em alta velocidade. Só aí que percebi que a marquise estava dominada de ciclista de todas as idades, velhos, crianças, jovens e adultos. Me perguntei onde estavam os atletas de final de semana que há instantes realizavam seus exercícios? Lembrei. É sábado, e como todo final de semana o Ibirapuera torna-se quintal de vários paulistanos, o espaço fica disputado.

Notei que um pouco mais adiante um professor ensinava a suas mais novas alunas como ficar em pé com os patins. Eram duas menininhas que se apoiavam uma a outra para se equilibrar. Não deveriam ter mais do que cinco anos. “Isso meninas, como pingüim”, incentivava o professor.

Niemeyer sempre foi defensor de uma correção na marquise: “Gostaria que parte dela fosse suprimida, dando-lhe uma forma arquitetônica mais bonita”, comentou certa vez. Não sou arquiteto, não posso discordar da opinião de um dos homens mais célebres que esse país já viu. Só sei que, bonita ou não, a marquise é como São Paulo, multicultural e amada por todos que a conhece.

Frases…

“A comunicação só é digerida se aquele que a emite é capaz de colocar-se na altura daquele que o ouve.”

“A relação de um professor com os alunos é canibal: você come as carnes jovens deles, e eles comem sua experiência.”

“Os jovens de todas as épocas e de todos os países sempre se entusiasmaram com as grandes idéias de transformação, eram revolucionários, mas se mantinham dentro do famoso esquema: todos nascemos incendiários e morremos bombeiros.”

UMBERTO ECO

A importância do herói nacional

Tiradentes
Tiradentes

Segundo o dicionário brasileiro da Língua Portuguesa, herói é um homem extraordinário pelas suas proezas guerreiras, pelo seu valor ou magnamidade. Porém, essa definição é superficial. Heróis são representações simbólicas de materialização de ideologias, referenciais e reflexos sociais. Sua importância nacional é eixo de discórdia e contestação entre estudiosos do assunto.A figura heróica é encontrada de forma segmentada, na música, arquitetura, pintura, literatura. Entretanto, é no poder de dominação política que ela exerce uma função determinante. 

Na mitologia grega, o mais popular herói foi Hércules, conhecido pela sua extraordinária força física, venceu todos os obstáculos impostos pela sua madrasta, a deusa Era, prestando inestimáveis serviços à humanidade. Derrotou seres monstruosos que flagelavam os homens, como a hidra de Lerna, o gigante Anteu e o leão de Neméia. As realizações de Hércules são interpretadas como símbolo da luta e das vicissitudes do povo grego em sua marcha para a civilização.

O herói está diretamente ligado à nação, corresponde ao todo idealizado pelos integrantes da sociedade, exprime a idéia de líder nato, não que necessariamente seja, pois sua imagem pode ser construída ao longo da história. É o percussor da população, o que faz dele necessário para a nação.

Na África do Sul, Nelson Mandela tornou-se símbolo de representação popular, liderou o movimento responsável pela extinção do regime de segregação racial que limitava a vida da maioria negra e atribuía à minoria branca uma série de direitos e privilégios. Instituiu uma Constituição não-racial e foi eleito o primeiro presidente negro do país. Mandela se caracterizou como herói nacional pelas suas realizações de cunho popular, uma das principais características do heroísmo.

Para alguns especialistas, Mandela é considerado um herói completo devido a sua fama ter se estendido além dos limites do seu país. Para eles, Tiradentes, símbolo da Inconfidência mineira, só pode ser chamado de herói no Brasil, em Portugal ele não passa de um traidor. Como Bin Laden que para muitos muçulmanos radicais é visto como herói. Além disso, Tiradentes não foi um vencedor. Os heróis idealizados pela tevê e pela História são bem sucedidos, derrotam mal feitores, destroem regimes autoritários e vencem obstáculos. Afirmam que se Tiradentes foi mesmo um herói, foi um tanto incompetente. Pode ser chamado no máximo de mártir.

Marco Túlio Cícero, cônsul romano, famoso pelos seus discursos, deixou-nos a seguinte frase:

POVO SEM HERÓI É POVO SEM MEMÓRIA, FACILMENTE VENCÍVEL


Não se pode negar a importância nacional do herói. Nele nos espelhamos, e tiramos coragem e força para lutarmos pelos nossos ideais. Se Hércules, Mandela e Tiradentes foram ou não um herói nacional, não importa, o que realmente nos interessa são suas representações, não suas ações.

Por Márcia S. de Souza

Mesmo na dureza do dia-a-dia existem ainda existem cenas que nos chocam, hoje vi uma dessas.

Estava caminhando para o trabalho quando vi um homem, devia ter uns trinta anos, agachado comendo os restos de comida de um saco de lixo. Sem olhar para o lado, sem olhar sequer para o que era, ele devorara como se aquela comida fosse a melhor do mundo e para ele era a única que lhe era permitida. Transeuntes olhavam para aquele homem e não o via, não enxergavam a agonia daquela criatura, talvez esses envolvidos em suas próprias misérias, em suas próprias tragédias.

Passei o dia inteiro pensando naquilo, naquele homem, naquela fome. Existem muitos tipos de fome, a fome de saúde, a fome de cultura, a fome de amor, a fome de viver, mas assim como aquele homem também me sinto mendigo. Nossos governantes poderiam, pelo menos, tentar matar nossa fome. O básico: saúde, educação, saneamento básico.

O descaso por nós é tão grande que nada mais parece comover essas pessoas, que são eleitas por nós e que por nós nada fazem. A nós cabe a desculpa de falta de tempo, falta sim vontade de nos mobilizarmos e não continuarmos imobilizados, para podermos ter certeza de que amanhã não sejamos nós a revirarmos o lixo. Precisamos sair do nosso mundinho, um mundinho totalmente autista, um mundo só nosso. Caso contrário seremos eternamente famintos.

O cartunista e o universitário

              carlos-latuff

Um dos maiores medos de um estudante de jornalismo, é saber como vai se portar na frente do seu primeiro entrevistado. Infinitas indagações giram em sua mente. Será que falará corretamente? Gesticulará demais? Vou importuná-lo com as perguntas? Foi nesse estado de apreensão, e confesso, de medo, que fui atrás da minha primeira entrevista na comemoração de cinco anos do jornal Brasil de Fato. O que não faltava eram possíveis entrevistados, líderes de movimentos sociais, jornalistas conhecidos, intelectuais. Porém um nome não saía da minha mente: Carlos Latuff. Ouvi falar dele pela primeira vez no dia anterior em sala de aula, e sabia que ele estaria no evento. Latuff é cartunista, carioca, ficou conhecido pelos seus desenhos que retratam temas polêmicos, como, a questão da Palestina e a guerra do Iraque, que fazem-nos parar para refletir. O primeiro contato foi efêmero, uma breve apresentação feita por minha professora na entrada do auditório da Pontifica Universidade Católica de São Paulo, o TUCA. Ao longo do evento só o vi durante o discurso que fez no palco parabenizando o jornal: “O Brasil de Fato é o Brasil que de fato queremos”, disse. A comemoração já estava na cerimônia de encerramento, quando percebi que na poltrona da frente, sentado, Latuff observava atenciosamente cada momento. Fiquei trêmulo, não sabia como abordá-lo. Depois disso o que diria? O que perguntaria? Só sabia que aquela era uma oportunidade única, e tinha que agarrá-la. Juntamente com duas amigas, fiz a abordagem: “Carlos tem como falar com você rapidinho?”, perguntei. “Rapidinho!”, repetiu com uma breve pausa, “Rapidinho não dá. Tchau! Vão com Deus. Foi um prazer.” Concluiu apertando minha mão. Somente depois entenderia o que aconteceu naquele momento.

Fiz a primeira pergunta que passou na minha cabeça: “Por que você escolheu a imagem para expressar sua opinião?”

“Ás vezes, escrevo, mas realmente sou melhor desenhando. É um negócio que aprendi dominar desde de garoto. Acredito que a imagem chega mais. Alguma charge, um pictograma, uma placa de trânsito, mesmo que você não saiba ler, vendo aquilo se entende a mensagem. A imagem é mais direta, você consegue contar até a história da humanidade em um desenho”, respondeu.

A partir daí fiquei mais calmo e consegui fazer as perguntas que queria.

“De todos os seus trabalhos, qual você classificaria como o melhor?”

“Eu tenho uma série chamada ‘Nós somos todos palestinos’, que é uma comparação que faço com o sofrimento dos palestinos com o sofrimento de outros povos na história, como, os negros nos Estados Unidos, o apartheid na África do Sul, nessa série todos os personagens dizem ‘Eu sou palestino’. Esse foi o trabalho mais importante que fiz, mas eu posso dizer que todas as séries que fiz sobre a Palestina são importantes. É um tema tabu, ninguém quer tocar, todo mundo tem medo de ser chamado de anti sêmita, de racista, de um monte de rótulos. Quem resolve apoiar a Palestina tem que está preparado para ser esculhambado, espinafrado.”

Após viajar em 1999 a Cisjordânia, Latuff virou simpatizante pela causa dos Palestinos, destinando boa parte do seu trabalho ao tema. Outro assunto que o intriga atualmente, é a questão da dengue em seu estado natal.

“E com relação as fotos sobre a dengue no Rio de Janeiro?”

“Eu gosto muito de fotografia, acho importante a linguagem da imagem e sempre gostei de fazer ensaios fotográficos sobre temas sociais. Nesse caso em particular da dengue, eu achei tanta picaretagem, que decidi fazer fotos mostrando a situação como está, e poucas qualidades, para contextualizar como chegou nesse ponto. Não é simplesmente culpa do mosquito ou do aquecimento global, é culpa da politicagem. Você tem até hoje ‘neguinho’ discutindo de quem é a responsabilidade do mosquito, se é federal, estadual ou municipal. Enquanto isso, você vê criança descendo a sepultura com dengue, isso é esculhambação, é esculacho.”

“Mas isso nos remete ao histórico da saúde pública do Rio de Janeiro”, afirmo.

“Sim, mas é inaceitável você ver criança morrendo. Fiz esse ensaio em vários lugares, um desses lugares foi a tenda de hidratação, onde o paciente recebe soro na veia . Só tirei quatro fotos, não consegui fazer um ensaio longo, porque fiquei lá desenhando com as crianças, dando uma de Patch Adams. É muito duro você ver crianças de cinco, sete anos com o soro espetado no braço, grogue, mole de dengue. Porque? Por causa da natureza? Não! Por causa da política. Desvio de verba, menos investimento para a saúde, que advém do neoliberalismo, pois neoliberalismo é Estado mínimo, menos dinheiro para o Estado e mais dinheiro para as grandes corporações. O governo federal abriu mão do combate à dengue e passou para o governo municipal. Os carros de combate a dengue estão apodrecendo em estacionamentos, o César Maia não absorveu os mata mosquitos que haviam sido demitidos no governo FHC, que foram readmitidos por força de lei, e o secretário de saúde municipal disse que não existe epidemia. Então, com o que eu fico revoltado e indignado, é exatamente saber que essas vítimas são vítimas da política, não do mosquito. Não sei quem mata mais, se é o mosquito ou o político.”

“As suas charges sobre o Iraque são chocantes, como aquela do soldado em uma cadeira de rodas. O que você tem a dizer sobre esse trabalho?”

“Cara! Os desenhos do Iraque tem a mesma função dos desenhos sobre a Palestina e dos outros desenhos. A proposta é que o blog (http://latuff2.deviantart.com/) seja um banco de imagens subversivas, sobre o Iraque. E ele tem sido! Tem um grupo guerrilheiro que usou desenhos do blog, em revistas e panfletos deles distribuídos lá no Iraque. O guerrilheiro tá se apropriando, é como se eu estivesse dando um AK 47 para eles, munição. Eu tô colaborando através de imagens, e eles sabem a importância disso tanto que eles tem site. É uma coisa impensável de se imaginar um grupo guerrilheiro ter um site, mas eles tem, porque sabem o quanto é importante. E como sei que a imagem também é importante, eu disponibilizo tudo de reprodução livre. E isso chama a atenção de organismos de segurança, Estados Unidos, Departamento de Defesa. O Pentágono visitou o site. É evidente que eles sabem que a mensagem dos desenhos não passa em branco. Então, eles ficam monitorando, não sei pra quê. O que pode acontecer é dizer que eu faço apologia ao terrorismo e fechar o site, daí eu abro outro site.”

Latuff começou sua carreira em uma pequena agência no Rio de Janeiro em 1989, como ilustrador. Publicou sua primeira charge em um boletim do sindicato dos estivadores, no início da década de 1990, e até hoje trabalha para a mídia independente. Tem como princípio nunca dar entrevista para a grande imprensa. Com o advento da internet, iniciou sua militância artística disponibilizando seus desenhos copyleft (livre reprodução) na grande rede.

A cada resposta dada, minha curiosidade aumentava. Qual seria a formação daquele homem que possui opiniões tão sólidas sobre assuntos diversos? Ao ouvir a resposta, confesso que fiquei espantado.

“Cara! Eu tenho segundo grau.”

Então perguntei: “O que uma pessoa que cursou até o segundo grau tem a dizer para os jornalistas que estão começando?” Mais uma vez recebi uma resposta surpreendente.

“Não existe discussão quanto a você ler e aprender, isso é ponto pacifico, todo o mundo tem que fazer. Mas o problema dos jornalistas não está na questão de ler, está na questão da ética, da sensibilidade social. Teve um estudante que me perguntou assim: “Se eu te perguntar o que é melhor para você?” A pergunta não é essa. Eu tenho que pensar no que é melhor para todos. O que for melhor para todos é o melhor pra mim. E o que ó melhor para todos? Você trabalhar na Globo, na Folha, no Estadão, para sacanear os movimentos sociais, para bater no MST, nos Sem Teto? Isso pode ser bom pra mim que ganho prêmios de redação, disso, daquilo. Mas é bom para todos? Essa é a questão. Eu não sei o que vai acontecer com você no futuro. Você tem que idade?”

“Dezoito”, respondi escutando atenciosamente o que falava.

“Ainda tá cheirando a tinta. Pode ser que quando eu te encontrar daqui à dez anos você seja mais um, como pode ser que seja um revolucionário. Não sei! Mas a questão é: a minha parte eu já fiz, estou fazendo. Quando acham que tenho alguma coisa para dizer de relevante, eu paro o que tô fazendo e falo. Converso com as pessoas, divido meu trabalho, o meu pensamento, os meus sentimentos. O que elas farão com isso, eu não sei. Mas eu espero, sinceramente, que essa conversa de alguma maneira possa deixar alguma coisa dentro de você, que no futuro se reverta em ação prática.”

Depois dessa resposta, lembrei do que ele tinha dito no começo, “Rapidinho não dá. Tchau! Vão com Deus. Foi um prazer.” Só aí que entendi que, com Carlos Latuff, não tem como você falar rapidamente.

“As portas já estão fechando.” Observou fitando a saída do auditório.

“Olha Latuff! Muito obrigado.”

“De nada. Foi bom pra você?”

“Com certeza.”

“Então tá bom.”

“Nos encontraremos”, proferi lembrado do que ele tinha dito sobre quando nos reencontrarmos daqui a dez anos.

“Espero. Adorei conhecê-lo.”

5 anos da Guerra no Iraque

5 anos da Guerra no Iraque

 

“Godoy, meu querido, parabéns pela entrevista. Manteve tudo
o que disse, respeitou minhas palavras, não mudou seu
contexto. Muito grato pelo respeito.”

                             Carlos Latuff

Uma manhã na Linha F

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8h 10, manhã de sábado, céu acinzentado, estação Manoel Feio, Itaquaquecetuba, grande São Paulo. Os passageiros chegam um a um, para embarcar no trem que tem como destino o tradicional bairro paulistano do Brás. Sento em um antigo banco de madeira pintado de azul. Ao meu lado, uma moça morena com fones nos ouvidos observa os transeuntes, no banco de trás, duas mulheres e um homem com olhares dispersos aguardam a chegada do trem. Cinco minutos é o tempo em que espero até o trem parar na plataforma. Entro no segundo vagão, e começo a minha viagem pela linha F da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos).

 Apesar de proibido o comércio ambulante começa ao fechar as portas. Um rapaz com uma deficiência na mão direita vende presilhas de cabelo: “Olha as presilhas TIC TAC. Três por um real. Lá fora você paga cinquenta centavos em cada presilha. Aqui na minha mão é só três por um real”. Uma senhora aparentando ter cinquenta e cinco anos, cruza os três vagões intercalados vendendo balas. Ao meu lado direito, um casal se abraça e brincam um com o outro. No esquerdo, uma família composta por pai, mãe e filho comentam sobre cada estação que passamos:

– Olha como tá ficando bonita. Logo tá pronta. Comenta o pai, ao passarmos pela futura estação Jardim Romano.

 A linha atravessa um processo de modernização. Além da construção de novas paradas, estações já existentes são reformadas. Segundo a CPTM, até o final de 2010 mais de R$ 1,2 bilhão será investido no trecho da rede metropolitana definida entre as estações Brás – Calmon Viana (Poá).

Inaugurada há setenta e quatro anos, a linha F, que foi rebatizada neste mês como linha 12- Safira, oferece serviços para bairros antes considerados rurais ao sul do rio Tietê. Ao passar dos anos, esses bairros cresceram, abrigando um população de baixa renda, o que foi determinante para ser rotulada pelos paulistanos como “a linha mais problemática de trens metropolitanos em São Paulo”.

Ao chegarmos na estação Itaim Paulista, um grande número de pessoas entram no vagão. Uma moça cede seu lugar para uma senhora idosa. Um jovem senta no chão encostando-se na porta. Na parede, os dizeres: “ Esse é o 13° trem reformado entregue na linha F”.

Alguns aproveitam esse momento para sua leitura diária. À minha frente, uma jovem loira, com olhos castanhos claros lê o livro “Os princípios do sucesso”; outra, vestida de jeans e blusa azul, lê uma das tantas obras de Paulo Coelho. Muitos conversam, uns dormem, outros observam a paisagem. O rapaz ao meu lado tenta ver o que tanto escrevo, porém disfarça ao ver que percebo. Passamos por São Miguel, Comendador Ermelino até chegarmos na nova estação USP Leste. Mesmo depois de dois meses da sua inauguração, os passageiros ainda se espantam com sua arquitetura contemporânea e agradável. O parque Ecológico do Tietê também chama a atenção pela imensa área verde. Pela última vez vejo rosto por rosto daquelas pessoas. Escuto a voz do condutor:

 -“Estação Tatuapé desembarque pelo lado direito do trem”.

 É aqui que fico. Desço e observo aquela enorme máquina se distanciar. Junto com ela pessoas seguem seus caminhos no mesmo vagão, porém suas vidas em trilhos diferentes.