Gente que faz a diferença

por Carina Eguía e Felipe Godoy

Revista SP Câncer – Ano 2 | nº 8 | outubro de 2011

 

Referência no Brasil e fora dele quando o assunto é uro-oncologia, Miguel Srougi avalia os avanços e os tabus da especialidade.

Humildade e sensibilidade. Estas são, sem dúvida, características marcantes do médico urologista Miguel Srougi, evidentes mesmo para quem o encontra pela primeira vez. Casado e pai de dois filhos – um deles segue os passos do pai – Srougi é hoje um dos principais nomes da uro-oncologia nacional. Mesmo assim, afirma não se achar “tomado por todos esses predicados e qualidades”. Segundo ele, um único indivíduo não realiza grandes coisas sozinho; a diferença se faz a partir do trabalho de grupos de pessoas de grande valor.

Com mais de 35 anos de carreira, banhados por muita dedicação e foco, formou-se pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), pós-graduou-se pela escola de medicina de Harvard e escreveu diversos livros. Dos tios, também médicos, vieram os exemplos para seguir a carreira. Mais tarde, “deixou-se impregnar” pelo talento de outros importantes profissionais, nomes como Ruben Gittes, Ernesto Lima Gonçalves, Marcel Machado, Antonino dos Santos Rocha, Ruy Bevilacqua e Eugênio Ferreira.

Entre a família, o trabalho e a busca pela felicidade – que diz encontrar quando consegue fazer o bem pelos pacientes ou pelas instituições em que atua – divide seu tempo, com uma calma notória, mesmo em meio ao turbilhão de atividades que fazem a vida correr “nos limites da decência”.

Das muitas lembranças que carrega, destaca o fato de ter vivido fora do país. Em sua opinião, todos os estudantes deveriam passar por esta experiência. “Isso molda o indivíduo, transformando-o em um ser mais rico. Além disso, bons médicos devem conseguir estabelecer relações humanas profundas, compreender bem a sociedade, a natureza e a psicologia humanas. Também é preciso ter como características inatas compaixão, altruísmo e espírito de doação”.

Para Srougi, a medicina proporciona àqueles que a exercem alguns momentos inebriantes, marcados pelos instantes em que se salva uma vida, reconforta o sofrimento e a dor de uma pessoa, ou quando se consegue influenciar positivamente as novas gerações. “Com esses dois tipos de estímulo, sou feliz e me sinto completo”. Em entrevista à SP Câncer, o médico avalia o desenvolvimento da urologia nos últimos 40 anos, fala sobre novas tecnologias e sobre o preconceito masculino no cuidado com a saúde.

SP Câncer – O sr. definiu a prática da urologia, na década de 1970, como sendo tradicional. Hoje, como o Brasil é visto no exterior com relação a esta especialidade?

MS – Atualmente, o Brasil é visto de forma bastante qualificada. Acredito que o principal motivo para esta reviravolta tenha sido o grande movimento de criação de programas de pós- graduação, o que ajudou, também, a incrementar a pesquisa. Isto porque estes programas – e seus graduandos – necessitam produzir trabalhos de acordo com todos os princípios mais consistentes de pesquisa. Hoje, a pós-graduação da urologia da FMUSP tem as melhores notas do país na Coordenação de Aperfeiçoamento Profissional de Nível Superior (Capes). Isto gera outro movimento importante: de maneira geral, a especialidade publica muitos artigos fora do Brasil. Para se ter uma ideia, a International Brasilian Journal of Urology é a quinta revista mais lida do mundo. Estes fatores, somados à atuação internacional de profissionais brasileiros, projetou positivamente a área.

SP Câncer – Como está a produção de conhecimento sobre o assunto? Qual o papel do Icesp neste sentido?

MS – A produção de conhecimento é intensa. O Icesp e o Hospital das Clínicas (HC) têm um papel que está se tornando insubstituível. Os dois hospitais estão recheados de profissionais de grande valor pessoal e técnico. Esse é o fator mais importante para que se coloque uma instituição em pujança. O ICESP teve o privilégio de ter sido comandado por um grupo – e eu até cito nominalmente Giovanni Guido Cerri (atual Secretário de Estado da Saúde), Paulo Hoff, diretor-geral do Instituto, e Marcos Fumio Koyama (atual superintendente do HC) – constituindo uma trinca que transformou um bloco de concreto no maior hospital público do Brasil, unindo, além de competência, importantes princípios pessoais imprimidos na instituição. O HC, por sua vez, é incomparável a qualquer outro hospital em temos assistenciais. Aqui são feitas 1,5 milhões de consultas e 600 mil cirurgias de médio e grande porte, anualmente. Fora isso, as duas instituições tem um papel no ensino médico brasileiro de grande destaque, concentrando um arcabouço de formação na saúde na América Latina. Aqui se desenha a medicina do futuro, formando as pessoas que, provavelmente, liderarão a área nos próximos 20 ou 30 anos.

SP Câncer – Quais os principais desafios da urologia no país, atualmente?

MS – A cadeira tem tido bons líderes, que estão adaptaram às inovações tecnológicas. Isso faz com que ela continue se desenvolvendo. Uma especialidade médica, para prosperar, tem que ter, além de uma estrutura consistente, uma área de atuação abrangente. A urologia tem essa característica. Mas, apesar de o trato urinário ser um sistema pequeno, as patologias urológicas são comuns e incluem problemas de alta prevalência na população, atingindo de crianças à idosos.

SP Câncer – Quais foram as principais descobertas da última década? O que isto representa para a população?

MS – Ao contrário do mito e do anseio popular, a medicina evolui lentamente. A verdade é que as pessoas não estão vivendo mais graças aos grandes avanços tecnológicos da medicina. A grosso modo, a expectativa de vida da população aumentou graças à realização de obras de infra-estrutura. Embora isso possa parecer meio grosseiro, o que tem ampliado a sobrevida dos indivíduos é o acesso ao sistema de tratamento de água e esgoto, atendimento à saúde infantil, cuidados com a maternidade e com a alimentação, vacinação em massa, uso de antibióticos e anestesias. Mas estas são questões do século passado. Não há uma grande revolução na medicina, atualmente. Não são as novas medicações, ou equipamentos ultramodernos que modificarão significativamente a vida da população.

SP Câncer – Quando falamos de tumores urológicos, como está o mapa epidemiológico do país?

MS – O câncer urológico não tem um retrato regional bem definido. O câncer mais comum é o de próstata. Mas, no Brasil, apesar dos esforços do Instituto Nacional do Câncer (INCA), ele é sub-avaliado. Não existe um registro confiável de incidência. O câncer de bexiga, ligado ao consumo de cigarro, aumentou muito em mulheres, devido ao crescimento do consumo do tabaco pela população feminina, desde o fim do século passado. O de pênis é o único que tem uma distribuição regional clara, sendo mais comum nas regiões pobres. Este tipo de tumor está associado à má higiene do local e sua incidência no nordeste é 20 vezes maior que a verificada no sudeste.

SP Câncer – Temos acompanhado um grande progresso tecnológico da área médica, consolidando um verdadeiro arsenal que pode ser empregado do diagnóstico ao tratamento de diversas doenças, incluindo o câncer. Especificamente na área da uro-oncologia, que novos benefícios estão à disposição dos pacientes?

MS – Acho que procedimentos como a vacina para o câncer de rim ou técnicas de cirurgia minimamente invasivas têm uma ação pontual. Com esses novos aparelhos, podemos tratar alguns pacientes com câncer de próstata ou de rim, por exemplo, mas isso não muda a sobrevida e não amplia suas chances de cura. Obviamente, esses tratamentos permitem uma ação menos agressiva, sem cortes e com um tempo de internação menor. Em contrapartida, são mais onerosos. Acredito que essas novas tecnologias têm recebido um excesso de atenção, por prometerem melhorar índices de impotência e incontinência, por exemplo. Mas os dois melhores trabalhos científicos sobre o assunto não mostraram diferenças significativas: o primeiro disse que os resultados nestes quesitos eram piores que os da cirurgia convencional; e o segundo indica uma melhora, apontando que a diferença, na verdade, está no cirurgião e não na técnica utilizada. No caso das vacinas, é fato que elas têm melhorado a perspectiva para os pacientes com câncer de rim. Mas não fazem a doença regredir, ou seja, não são curativas. Sendo assim, tem uma ação limitada, auxiliando a ampliar a expectativa de vida destes doentes, ainda que a um custo bastante elevado e sem reflexos à qualidade de vida. Será que vale a pena?

SP Câncer – No conhecimento geral da população, o HPV está muito ligado ao desenvolvimento de tumores ginecológicos. Ele pode afetar a saúde do homem?

MS – O Papiloma Vírus Humano (HPV), aparentemente, causa câncer de pênis. Cerca de 30% a 40% dos homens com este tipo de tumor também são portadores do vírus. Infelizmente, a vacinação em massa, ainda é uma realidade distante. Sendo assim, o uso de preservativos em todas as relações sexuais é fator de grande importância na prevenção deste tipo de tumor.

SP Câncer – A partir de quando o homem precisa se preocupar em realizar exames periódicos?

MS – O câncer do homem que justifica a realização de exames regulares é o de próstata, que deve se iniciar aos 45 anos. No caso de pessoas com histórico familiar da doença (pai ou irmão), a idade indicada para início da realização dos exames cai para 40.

SP Câncer – Antigamente a indicação para início do rastreamento para o câncer de próstata era a partir dos 50 anos. Há um motivo para a doença estar atingindo populações mais jovens?

MS – Não se sabe. Há três motivos que provocaram o aumento da incidência do câncer de próstata. O primeiro é o crescimento da expectativa de vida. Depois, é preciso considerar a descoberta do PSA (antígeno prostático específico), uma proteína que se altera quando a doença está instalada, permitindo a detecção do câncer em pacientes que não apresentam alteração do volume do órgão. E o terceiro é, provavelmente, um motivo ambiental. Os japoneses, por exemplo, apresentam baixa incidência de câncer de próstata. Mas, quando um indivíduo sai do Japão para morar nos Estados Unidos, mudando os hábitos alimentares e o estilo de vida, tem o risco ao desenvolvimento do problema igualado ao apresentado pela população norte-americana. Isso faz com que creditemos o aumento do risco à fatores ambientais.

SP Câncer – Considerando os preconceitos e a resistência da população masculina em cuidar da própria saúde, é mais difícil estabelecer uma relação médico-paciente saudável e proveitosa?

MS – Existe um processo darwiniano. Segundo a teoria evolucionista, só sobrevivem os animais mais fortes; os mais fracos desaparecem. O homem, não quer se mostrar fraco, doente ou frágil, para manter seu papel e respeito social. Isso pode parecer muito teórico, mas é real. Vejo isso no meu dia-a-dia: os pacientes, em especial as figuras públicas, sofrem mais por saber que sua doença será exposta aos grupos a que pertencem do que por estar com câncer. Existe, sim, o problema do preconceito com relação ao toque e à possibilidade de que o exame provoque dor, embora esse não seja um sentimento unânime. Essa postura prejudica uma ação rápida diante de um diagnóstico precoce. Há, entretanto, muitos homens que se cuidam, de maneira geral, fazendo exames preventivos periodicamente. Essas pessoas se beneficiam, realmente, do que a medicina pode oferecer.

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