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Informação que direciona a ação

por Carina Eguía e Felipe Godoy para revista SP Câncer

A Fundação Oncocentro de São Paulo concentra e analisa as informações sobre a doença no estado. A partir desses dados, é possível formular políticas públicas de controle da doença e assistência do paciente com câncer.

Categórico e veemente. Assim é o médico epidemiologista José Eluf Neto, presidente da Fundação Oncocentro de São Paulo (FOSP) e professor de epidemiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), ao defender o papel da entidade, e os valores agregados do estudo epidemiológico do câncer, na definição de estratégias e políticas públicas para o controle da doença.

Fundada em 1967, como Centro de Oncologia (CEON), por um grupo de professores da FMUSP, o objetivo principal da entidade era de incentivar e coordenar o estudo de atividadesem câncer. Seteanos mais tarde, a Lei Estadual nº 195 transformava o CEONem Fundação Centrode Pesquisaem Oncologia. Comisto, a entidade agrega à seus objetivos precípuos o incentivo à pesquisa, enssino e assistência, concentrando, ainda, o estímulo de atividades de prevenção e detecção precoce da doença. Hoje, a Fundação Oncocentro de São Paulo é responsável, entre outras funçãões, por gerar dados epidemiológicos do câncer referentes ao Estado de São Paulo, promover a formação de cancerologistas e o treinamento de técnicos especializados, desenvolver pesquisas e métodos de prevenção, diagnóstico e tratamento do câncer.

SP Câncer – O sr. Assumiu a presidência da Fundação Oncocentro em março de 2011. Como foi receber o convite para atuar nesta respeitada instituição ?

JEN – Receber o convite para presidir a Fundação, me deixou temeroso. Até aquele momento eu não havia acumulado experiência no Sistema Público, além de ter trabalhado em um centro de saúde ligado à Faculdade de Medicina. Mas, ao considerar que a epidemiologia é uma ferramenta fundamental para o controle do câncer, e tendo consciência de que essa é a minha especialidade, entendi que eu poderia contribuir de alguma maneira para o desenvolvimento da FOSP.

O interessante é que, ao analisarmos a história da entidade, podemos notar que ela teve seu início na FMUSP, como CEON, já manifestando, desde o primeiro momento a preocupação em atuar diretamente na prevenção e detecção precoce do câncer, principalmente do câncer ginecológico e de mama. Na área da assistência, o início da entidade foi marcado pela produção de próteses buço-maxilares. A preocupação com o registro epidemiológico da doença surgiu mais tarde, mas não tenho dúvida de que este seja, atualmente, o principal papel da entidade.

SP Câncer – Entre o registro de câncer, a formação de profissionais e a assistência, como está a atuação da FOSP atualmente?

JEN – Hoje a FOSP conta com três diretorias adjuntas, a de Informação e Epidemiologia; a de Reabilitação; e a de Laboratório e Anatomia Patológica. A primeira delas é a responsável por realizar o registro estadual de câncer. A área analisa dados de todos os hospitais públicos e de alguns hospitais privados de São Paulo, gerando informações capazes de auxiliar o Governo do Estado no desenvolvimento de políticas públicas para controle da doença. Agora, queremos estabelecer uma parceria para realização de uma pesquisa que permita averiguar como está a mortalidade por câncer. Estes novos dados ajudarão a incrementar as análises, fornecendo uma visão ainda mais completa sobre a situação da doença no estado.

A segunda diretoria concentra a atividade de assistência. Acredito que o atendimento realizado ali à população é uma questão de cidadania. Quando as próteses ficam prontas, os pacientes se emocionam muito, porque isso representa a chave para que ele possa retornar ao convívio social. Justamente pelos benefícios sociais acumulados por este nicho de atuação da entidade – e por ser considerada uma das melhores instituições na produção de próteses – acredito que, a médio ou longo prazo, a área deverá se desvincular da Fundação, dando passos mais largos no desenvolvimento de suas atividades.

Por fim, a diretoria-adjunta de Laboratório e Anatomia Patológica concentra a maior parte dos 105 profissionais da Fundação. Temos o orgulho de manter o melhor centro de formação de citotécnicos do país. É preciso um ano e meio para formar um bom profissional. O setor realiza análises de papanicolau, anatomo-patológicos e imuno-histoquímicos, sendo, este último um exame sofisticado, que demanda maior expertise dos profissionais. Além disso, este exame tem sido ferramenta chave para a decisão de terapêuticas. Assim, a tendência, em termos de futuro, é diminuir, na FOSP, o volume de análises de papanicolau ou anatomo-patológicos, que podem ser feitos por máquinas, e ampliar o volume de exames imuno-histoquímicos.

SP Câncer – Como está, de maneira geral, o cenário atual do câncer no Estado de São Paulo?

JEN – Um artigo publicado pela FOSP recentemente dá conta de que a mortalidade por câncer, ajustada por idade, tem diminuído de maneira geral. Nos países desenvolvidos este é um cenário que começou a se delinear há 10 anos.

Uma das principais razões para isso é a queda de mortalidade da doença no sistema gastro-digestivo, um tipo de câncer causado, principalmente, pelas condições de vida do indivíduo. Outro tipo da doença que tem apresentado queda é a de colo de útero.

Também analisamos que o de pulmão tem começado a cair, principalmente em homens, assim como de tumores que afetam a região da cabeça e do pescoço. Isso pode estar relacionado com a redução do hábito do tabagismo e do etilismo na população. Com os avanços no tratamento, também é possível notar a queda nas mortes infantis provocadas por leucemia linfóide aguda.

SP Câncer – Se os dados de incidência têm aumentado e a mortalidade reduzido, isso significa que é possível conviver com o câncer, como doença crônica. Mas é possível conviver com a doença mantendo a qualidade de vida?

JEN – O consumo de cigarro e álcool são os principais vilões quando se discute a prevenção da doença. Além disso, é preciso estimular ainda mais a população a manter hábitos de vida saudáveis, como alimentação adequada, prática de exercícios físicos e a manutenção de cuidados gerais com a saúde.

De fato, houve um avanço muito grande no tratamento do câncer no Brasil. Hoje é perfeitamente possível conviver com a doença desfrutando de qualidade de vida, assim como portadores de inúmeras outras doenças crônicas o fazem. Nesse sentido, cabe destacar, ainda, a evolução dos cuidados paliativos no país. O que queremos, agora, é desenvolver um indicador que se torne uma ferramenta capaz de avaliar a qualidade de vida do paciente em cuidados paliativos.Esta, aliás, é uma das preocupações do Comitê de Referência em Oncologia, presidido pelo Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp) e do qual a FOSP faz parte.

SP Câncer – O sr. acredita que, ao personalidades assumirem publicamente o câncer, podem estar contribuindo no sentido de disseminar informação sobre prevenção e detecção precoce?

JEN – Eu acredito que a exposição desses casos para o público pode contribuir de uma maneira positiva, sim. Em primeiro lugar, porque esta atitude ajuda a desmistificar um pouco o problema. Em segundo lugar, porque estimula a discussão sobre a doença e leva à população uma consciência maior sobre a importância da prevenção primária e da detecção precoce da doença. Além disso, eu sou otimista. O Brasil tem melhorado em vários aspectos. Um deles é a produção científica, que cresceu significativamente em termos de quantidade e qualidade. As pessoas começam a entender que câncer não é sinônimo de morte; e que é possível conviver com a doença.

Gente que faz a diferença

por Carina Eguía e Felipe Godoy

Revista SP Câncer – Ano 2 | nº 8 | outubro de 2011

 

Referência no Brasil e fora dele quando o assunto é uro-oncologia, Miguel Srougi avalia os avanços e os tabus da especialidade.

Humildade e sensibilidade. Estas são, sem dúvida, características marcantes do médico urologista Miguel Srougi, evidentes mesmo para quem o encontra pela primeira vez. Casado e pai de dois filhos – um deles segue os passos do pai – Srougi é hoje um dos principais nomes da uro-oncologia nacional. Mesmo assim, afirma não se achar “tomado por todos esses predicados e qualidades”. Segundo ele, um único indivíduo não realiza grandes coisas sozinho; a diferença se faz a partir do trabalho de grupos de pessoas de grande valor.

Com mais de 35 anos de carreira, banhados por muita dedicação e foco, formou-se pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), pós-graduou-se pela escola de medicina de Harvard e escreveu diversos livros. Dos tios, também médicos, vieram os exemplos para seguir a carreira. Mais tarde, “deixou-se impregnar” pelo talento de outros importantes profissionais, nomes como Ruben Gittes, Ernesto Lima Gonçalves, Marcel Machado, Antonino dos Santos Rocha, Ruy Bevilacqua e Eugênio Ferreira.

Entre a família, o trabalho e a busca pela felicidade – que diz encontrar quando consegue fazer o bem pelos pacientes ou pelas instituições em que atua – divide seu tempo, com uma calma notória, mesmo em meio ao turbilhão de atividades que fazem a vida correr “nos limites da decência”.

Das muitas lembranças que carrega, destaca o fato de ter vivido fora do país. Em sua opinião, todos os estudantes deveriam passar por esta experiência. “Isso molda o indivíduo, transformando-o em um ser mais rico. Além disso, bons médicos devem conseguir estabelecer relações humanas profundas, compreender bem a sociedade, a natureza e a psicologia humanas. Também é preciso ter como características inatas compaixão, altruísmo e espírito de doação”.

Para Srougi, a medicina proporciona àqueles que a exercem alguns momentos inebriantes, marcados pelos instantes em que se salva uma vida, reconforta o sofrimento e a dor de uma pessoa, ou quando se consegue influenciar positivamente as novas gerações. “Com esses dois tipos de estímulo, sou feliz e me sinto completo”. Em entrevista à SP Câncer, o médico avalia o desenvolvimento da urologia nos últimos 40 anos, fala sobre novas tecnologias e sobre o preconceito masculino no cuidado com a saúde.

SP Câncer – O sr. definiu a prática da urologia, na década de 1970, como sendo tradicional. Hoje, como o Brasil é visto no exterior com relação a esta especialidade?

MS – Atualmente, o Brasil é visto de forma bastante qualificada. Acredito que o principal motivo para esta reviravolta tenha sido o grande movimento de criação de programas de pós- graduação, o que ajudou, também, a incrementar a pesquisa. Isto porque estes programas – e seus graduandos – necessitam produzir trabalhos de acordo com todos os princípios mais consistentes de pesquisa. Hoje, a pós-graduação da urologia da FMUSP tem as melhores notas do país na Coordenação de Aperfeiçoamento Profissional de Nível Superior (Capes). Isto gera outro movimento importante: de maneira geral, a especialidade publica muitos artigos fora do Brasil. Para se ter uma ideia, a International Brasilian Journal of Urology é a quinta revista mais lida do mundo. Estes fatores, somados à atuação internacional de profissionais brasileiros, projetou positivamente a área.

SP Câncer – Como está a produção de conhecimento sobre o assunto? Qual o papel do Icesp neste sentido?

MS – A produção de conhecimento é intensa. O Icesp e o Hospital das Clínicas (HC) têm um papel que está se tornando insubstituível. Os dois hospitais estão recheados de profissionais de grande valor pessoal e técnico. Esse é o fator mais importante para que se coloque uma instituição em pujança. O ICESP teve o privilégio de ter sido comandado por um grupo – e eu até cito nominalmente Giovanni Guido Cerri (atual Secretário de Estado da Saúde), Paulo Hoff, diretor-geral do Instituto, e Marcos Fumio Koyama (atual superintendente do HC) – constituindo uma trinca que transformou um bloco de concreto no maior hospital público do Brasil, unindo, além de competência, importantes princípios pessoais imprimidos na instituição. O HC, por sua vez, é incomparável a qualquer outro hospital em temos assistenciais. Aqui são feitas 1,5 milhões de consultas e 600 mil cirurgias de médio e grande porte, anualmente. Fora isso, as duas instituições tem um papel no ensino médico brasileiro de grande destaque, concentrando um arcabouço de formação na saúde na América Latina. Aqui se desenha a medicina do futuro, formando as pessoas que, provavelmente, liderarão a área nos próximos 20 ou 30 anos.

SP Câncer – Quais os principais desafios da urologia no país, atualmente?

MS – A cadeira tem tido bons líderes, que estão adaptaram às inovações tecnológicas. Isso faz com que ela continue se desenvolvendo. Uma especialidade médica, para prosperar, tem que ter, além de uma estrutura consistente, uma área de atuação abrangente. A urologia tem essa característica. Mas, apesar de o trato urinário ser um sistema pequeno, as patologias urológicas são comuns e incluem problemas de alta prevalência na população, atingindo de crianças à idosos.

SP Câncer – Quais foram as principais descobertas da última década? O que isto representa para a população?

MS – Ao contrário do mito e do anseio popular, a medicina evolui lentamente. A verdade é que as pessoas não estão vivendo mais graças aos grandes avanços tecnológicos da medicina. A grosso modo, a expectativa de vida da população aumentou graças à realização de obras de infra-estrutura. Embora isso possa parecer meio grosseiro, o que tem ampliado a sobrevida dos indivíduos é o acesso ao sistema de tratamento de água e esgoto, atendimento à saúde infantil, cuidados com a maternidade e com a alimentação, vacinação em massa, uso de antibióticos e anestesias. Mas estas são questões do século passado. Não há uma grande revolução na medicina, atualmente. Não são as novas medicações, ou equipamentos ultramodernos que modificarão significativamente a vida da população.

SP Câncer – Quando falamos de tumores urológicos, como está o mapa epidemiológico do país?

MS – O câncer urológico não tem um retrato regional bem definido. O câncer mais comum é o de próstata. Mas, no Brasil, apesar dos esforços do Instituto Nacional do Câncer (INCA), ele é sub-avaliado. Não existe um registro confiável de incidência. O câncer de bexiga, ligado ao consumo de cigarro, aumentou muito em mulheres, devido ao crescimento do consumo do tabaco pela população feminina, desde o fim do século passado. O de pênis é o único que tem uma distribuição regional clara, sendo mais comum nas regiões pobres. Este tipo de tumor está associado à má higiene do local e sua incidência no nordeste é 20 vezes maior que a verificada no sudeste.

SP Câncer – Temos acompanhado um grande progresso tecnológico da área médica, consolidando um verdadeiro arsenal que pode ser empregado do diagnóstico ao tratamento de diversas doenças, incluindo o câncer. Especificamente na área da uro-oncologia, que novos benefícios estão à disposição dos pacientes?

MS – Acho que procedimentos como a vacina para o câncer de rim ou técnicas de cirurgia minimamente invasivas têm uma ação pontual. Com esses novos aparelhos, podemos tratar alguns pacientes com câncer de próstata ou de rim, por exemplo, mas isso não muda a sobrevida e não amplia suas chances de cura. Obviamente, esses tratamentos permitem uma ação menos agressiva, sem cortes e com um tempo de internação menor. Em contrapartida, são mais onerosos. Acredito que essas novas tecnologias têm recebido um excesso de atenção, por prometerem melhorar índices de impotência e incontinência, por exemplo. Mas os dois melhores trabalhos científicos sobre o assunto não mostraram diferenças significativas: o primeiro disse que os resultados nestes quesitos eram piores que os da cirurgia convencional; e o segundo indica uma melhora, apontando que a diferença, na verdade, está no cirurgião e não na técnica utilizada. No caso das vacinas, é fato que elas têm melhorado a perspectiva para os pacientes com câncer de rim. Mas não fazem a doença regredir, ou seja, não são curativas. Sendo assim, tem uma ação limitada, auxiliando a ampliar a expectativa de vida destes doentes, ainda que a um custo bastante elevado e sem reflexos à qualidade de vida. Será que vale a pena?

SP Câncer – No conhecimento geral da população, o HPV está muito ligado ao desenvolvimento de tumores ginecológicos. Ele pode afetar a saúde do homem?

MS – O Papiloma Vírus Humano (HPV), aparentemente, causa câncer de pênis. Cerca de 30% a 40% dos homens com este tipo de tumor também são portadores do vírus. Infelizmente, a vacinação em massa, ainda é uma realidade distante. Sendo assim, o uso de preservativos em todas as relações sexuais é fator de grande importância na prevenção deste tipo de tumor.

SP Câncer – A partir de quando o homem precisa se preocupar em realizar exames periódicos?

MS – O câncer do homem que justifica a realização de exames regulares é o de próstata, que deve se iniciar aos 45 anos. No caso de pessoas com histórico familiar da doença (pai ou irmão), a idade indicada para início da realização dos exames cai para 40.

SP Câncer – Antigamente a indicação para início do rastreamento para o câncer de próstata era a partir dos 50 anos. Há um motivo para a doença estar atingindo populações mais jovens?

MS – Não se sabe. Há três motivos que provocaram o aumento da incidência do câncer de próstata. O primeiro é o crescimento da expectativa de vida. Depois, é preciso considerar a descoberta do PSA (antígeno prostático específico), uma proteína que se altera quando a doença está instalada, permitindo a detecção do câncer em pacientes que não apresentam alteração do volume do órgão. E o terceiro é, provavelmente, um motivo ambiental. Os japoneses, por exemplo, apresentam baixa incidência de câncer de próstata. Mas, quando um indivíduo sai do Japão para morar nos Estados Unidos, mudando os hábitos alimentares e o estilo de vida, tem o risco ao desenvolvimento do problema igualado ao apresentado pela população norte-americana. Isso faz com que creditemos o aumento do risco à fatores ambientais.

SP Câncer – Considerando os preconceitos e a resistência da população masculina em cuidar da própria saúde, é mais difícil estabelecer uma relação médico-paciente saudável e proveitosa?

MS – Existe um processo darwiniano. Segundo a teoria evolucionista, só sobrevivem os animais mais fortes; os mais fracos desaparecem. O homem, não quer se mostrar fraco, doente ou frágil, para manter seu papel e respeito social. Isso pode parecer muito teórico, mas é real. Vejo isso no meu dia-a-dia: os pacientes, em especial as figuras públicas, sofrem mais por saber que sua doença será exposta aos grupos a que pertencem do que por estar com câncer. Existe, sim, o problema do preconceito com relação ao toque e à possibilidade de que o exame provoque dor, embora esse não seja um sentimento unânime. Essa postura prejudica uma ação rápida diante de um diagnóstico precoce. Há, entretanto, muitos homens que se cuidam, de maneira geral, fazendo exames preventivos periodicamente. Essas pessoas se beneficiam, realmente, do que a medicina pode oferecer.

Jardim Romano ganha festa junina

Fotos: Felipe Godoy

Carlos diante das barracas que montou para a Festa Junina do Jd. Romano.

Os estabelecimentos comerciais do Jardim Romano, bairro localizado no extremo leste da capital paulista, foram os locais escolhidos para a fixação dos convites. “Estaremos realizando um maravilhosa Festa Junina, venha se divertir de montão com seus amigos”, diz o escrito nos cartazes.

A ideia da festa surgiu de Carlos Barros da Silva, presidente do Grupo de Escoteiros Nova Aliança, que atua na região e no município de Itaquaquecetuba, próximo ao bairro. “Quis fazer alguma coisa e lancei a ideia. Daí as pessoas começaram a me procurar querendo montar barraca e ajudar”, afirma. E Carlos não fica apenas na organização, pelo contrário, o escoteiro de 58 anos põe a mão na massa. Quando foi procurado pela nossa reportagem estava montando as barracas para a festa, que aconteceu no último sábado (25/6), na rua Capachós. A via ficou conhecida por se tornar o símbolo da destruição causada pelas enchentes no bairro, entre dezembro de 2009 e março de 2010.

Carlos é pernambucano e desde os 12 anos escoteiro. “Devo muito ao escotismo”, afirma. Aposentado – “por tempo de serviço”, frisa –, organizou a festa junina no Jardim Romano com o objetivo de atrair a criançada e unir a comunidade. A busca pelo bem comum é algo que corre nas veias de Carlos. Há 25 anos sob o comando do Nova Aliança, já realizou diversas atividades culturais, educacionais e de lazer, muitas delas exibidas em um painel, alocado em um pequeno escritório. Além disso, ostenta as pastas em que guarda recortes de jornais e certificados de vários cursos. Questionado sobre sua história de vida, confessa: “minha história é grande. Inclusive, estou até escrevendo um livro sobre ela”.

O escotismo foi criado na Inglaterra, em 1907, por Robert Baden-Powell. O objetivo do movimento é desenvolver no jovem valores essenciais para o seu crescimento e para a sociedade como a fraternidade, a lealdade, o altruísmo, a responsabilidade, o respeito e a disciplina. “Levamos cidadania e valores que irão acompanhá-los em toda sua vida.” Já são mais de 28 milhões de escoteiros associados em todo planeta. Carlos já perdeu as contas de quantos desses jovens passaram por suas mãos. “Só no Parque Ecológico de Itaquá foram mais de 500. Atualmente são uns 30”, tenta calcular. “Não ensinamos com o giz. Nosso método é o de aprender na prática”, explica. De acordo com ele, o trabalho é realizado tendo como base o tripé físico, mental e espiritual. “Nosso objetivo principal é formar uma grande família.”

No currículo de Carlos está gravado a luta por muitas causas sociais. Uma delas é o movimento Pró-estação Jardim Romano, que por muitos anos buscou a construção de uma parada ferroviária no bairro. “Dê uma olhada neste jornal (datado de setembro de 1987), veja quanto tempo lutamos por isso”. A estação foi inaugurada em 2008. No horizonte de Carlos ainda tem vários projetos a serem concretizados, como o campeonato de pipas. “Utilizamos os jogos para melhorar o rendimento escolar do jovem”.

As bandeirolas, os brinquedos, as barracas com comidas típicas, a quadrilha, entre outros elementos que fizeram parte dos festejos juninos no Jardim Romano, são conquistas de Carlos para toda comunidade. O que mostra que ele segue à risca o lema “Sempre Alerta” dos escoteiros, que representa a necessidade de você estar constantemente pronto para cumprir com o seu dever: ajudar. “O que me tornou um cidadão ativo foi o escotismo”, conclui.

Moradores auxiliam na organização da festa.

Veja essa reportagem e fotos da festa junina do Jardim Romano nos portais de notícias São Miguel Paulista e Itaim Paulista.

À espera por um órgão

Colaboração: Ana Paula Gomes, Marília Lino e Silvia Gonçalves

O motorista João Honorato de Carvalho morreu em janeiro de 2001, após ficar mais de dois anos na fila de espera por um rim. Sua esposa, a pensionista de 60 anos Sebastiana Félix de Carvalho falou sobre o caso. Durante a conversa, as lágrimas rolavam no rosto da viúva. Hoje, como consequência da morte do esposo, ela é depressiva e, semanalmente, faz tratamento psicológico.

Carioca, extrovertido e brincalhão, porém, genioso, esse era Carvalho. O motorista, hipertenso e anêmico, tinha aversão a médicos e não se tratou como deveria. Somente quando sua situação agravou e não aguentava mais subir escadas, se rendeu e marcou uma consulta. O médico pediu catorze exames, urgentemente, já no quinto foi diagnosticado o problema renal. Como sou do interior, não tinha muito conhecimento sobre doenças, não pensava que o problema renal fosse tão grave, pensava que ele tinha cirrose, porque ele bebia muito. Ele ficava inchado e com uma palidez escura”, recorda a esposa.

Foto: Felipe Godoy

Recordações: pelas fotos, Sebastiana ainda lembra do marido

Carvalho começou a se tratar com o nefrologista, médico especializado em rins, e após um tempo a fazer sessões de hemodiálise purificação do sangue realizada por um aparelho especial que funciona como um rim artificial. A filha do casal saiu do trabalho para ajudá-los. Enquanto a avó olhava o neto, ela acompanhava o pai no hospital, que ficava quatro horas na máquina de hemodiálise, três vezes por semana. Além disso, o paciente tinha que cumprir uma dieta rigorosa, formada por alimentos leves, como carne branca e legumes, e até o líquido era controlado, apenas meio copo diariamente. No entanto, devido a grande quantidade de remédios, o motorista acabava tomando mais líquido do que o permitido.

Sebastiana descobriu que era compatível e poderia doar o rim ao cônjuge, porém, quando ela realizava o penúltimo exame, Carvalho desistiu da operação, decidindo continuar na fila de espera. Segundo a esposa essa decisão foi tomada por medo, pois João tinha um amigo que recebeu o rim do irmão e depois de um ano morreu. Vá que eu tenha rejeição. Não vai dar para tirar o rim de mim e colocar de volta em você. E você, vai ficar só com um rim?”, comentava ele na época à mulher. Entretanto, não deu para esperar. Certo dia ele começou a passar mal, pegou o automóvel, não permitiu que ninguém assumisse o volante e foi dirigindo com a cabeça para fora do carro até o hospital, juntamente com a esposa e o filho. Foi a última vez que o motorista conduziu um veículo.

Ao contrário de Carvalho, muitos brasileiros tiveram a oportunidade de receber um órgão. Dados da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, a ABTO, mostram que a taxa de doadores efetivos no terceiro trimestre de 2010, atingiu 10 doadores por milhão de população (pmp). Houve um aumento nas taxas de transplante pulmonar (17%), renal (8%), hepático (6%) e de córnea (2%) . Com relação ao transplante renal, São Paulo apresenta a maior taxa de doadores, 49,7 pmp.

De acordo com dados do Sistema Nacional de Transplantes, 63.866 pessoas estavam na fila de espera por um órgão no Brasil em 2009. Quase um quinto deste total aguardava em São Paulo. Atualmente, o programa público de transplante de órgãos e tecidos brasileiro é um dos maiores do mundo. O país conta 548 estabelecimentos de saúde credenciados, 1.376 equipes médicas autorizadas e 25 Centrais de Notificação Captação e Distribuição de Órgãos (CNCDO).

Todos os órgãos e tecidos adquiridos de um doador morto são distribuídos segundo o sistema de lista única, organizado pela Secretaria da Saúde de cada estado. Quando o órgão é captado, a CNCDO verifica se há um receptor na região, não havendo, o órgão é disponibilizado na fila nacional. Logo que um paciente é incluso na fila, ele recebe um comprovante expedido pela CNCDO e os critérios de distribuição do órgão ou tecido que ele precisa.

Segundo o presidente da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO), Ben-Hur Ferraz Neto, o número de pessoas na lista de espera por um órgão no Brasil é grande para a quantidade de doadores, contudo a situação está mudando. A gente tem tido um aumento importante na doação de órgãos no Brasil, especialmente no estado de São Paulo. (…) No entanto, a gente precisa andar bastante. Precisa progredir muito nisso. Têm estados no país que a doação ainda é muito baixa, disse o médico. Ele ainda explica que a fila sempre é respeitada, porém existem critérios de gravidade para cada órgão. Existem critérios de compatibilidade de rins, critérios de gravidade no fígado e no coração. Esses critérios de gravidade quando são contemplados, colocam essa pessoa em prioridade, no primeiro lugar da fila. Mas são critérios transparentes, claros, baseados em exames. Nada é subjetivo. Tudo é objetivo. E esses critérios permitem que algum paciente seja transplantado antes do outro. (…) Outros pacientes têm um critério que chama MELD  usado como critério no transplante de fígado , esse critério é de gravidade. Dentro de determinados exames, há posições na lista. Mas isso é baseado no que é importante, em critérios absolutamente transparentes e controlados pela Secretaria de Saúde de cada estado. Então, ninguém passa na frente de ninguém, conclui.

Foto: Ana Paula Gomes

Ben-Hur Ferraz Neto: a gente tem tido um aumento importante na doação de órgãos no Brasil, especialmente no estado de São Paulo”

Em outubro de 2009, o Ministério da Saúde anunciou a criação de um sistema informatizado, permitindo maior transparência na lista de espera. Neste banco de dados, os prontuários estarão sempre atualizados e os pacientes poderão consultar sua posição na lista.

A maior parte dos pacientes que aguardava por um órgão em 2009 esperava por um rim (34.640). A busca por córneas vem em segundo lugar, com 23.756 candidatos, seguida por fígado (4.304), rim e pâncreas conjugados (576), coração (305), pulmão (161) e pâncreas (124).

Em um momento durante a entrevista na casa de Sebastiana, ela se levantou e foi buscar o último cartão de natal que recebeu do marido. Nele, dizia o seguinte: Sempre que dividimos, ganhamos; Sempre que trocamos, ganhamos; Sempre que somamos, ganhamos; Neste natal, desejo dividir, trocar, somar com vocês minhas alegrias, meus sonhos, minha fé e meu amor. Só assim diminuirão a saudade e a solidão”.

Dividir, trocar e somar, ações realizadas por quem doa seus órgãos. Talvez se mais pessoas doassem muitos “Joãos seriam salvos. Não esqueça, para ser um doador basta avisar à sua família do seu desejo e lembre-se que alguns órgãos podem ser doados em vida.

Cleisla Garcia, premiada com reportagem sobre Camboja, segue exemplo do jornalismo de Vlado

Cleisla Garcia (a direita) com o senador Eduardo Suplicy, equipe da TV Record e do SBT
Cleisla Garcia (a direita) com o senador Eduardo Suplicy, equipe da TV Record e do SBT

O 30º Prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos e Anistia destacou, entre os jornalistas premiados, como Cleisla Garcia, a luta incansável por uma sociedade mais justa. Para os estudantes desta primeira década do século XXI, a história de Vladimir Herzog é tão desconhecida quanto dos milhares de brasileiros que morreram lutando contra a ditadura.

Para nós, estudantes de Jornalismo, é preciso lembrar, sempre. Vladimir Herzog nasceu em 1937, na antiga Iugoslávia, e chegou ao Brasil em 1942. Formou-se em Filosofia na USP e se tornou jornalista do Jornal O Estado de São Paulo em 1959. Sua trajetória no jornalismo foi tão importante quanto no cinema, como documentarista.

Mas, vivendo, como todos os jornalistas, sob o totalitarismo, foi obrigado a prestar depoimento sobre sua relação com o Partido Comunista, na sede do DOI-Codi (Departamento de Operações e Informações, Centro de Operações de Defesa Interna), em São Paulo. Na noite do dia 25 de outubro de 1975, aquele que era simpatizante do partido e nunca se envolveu em ações armadas, foi brutalmente torturado e encontrado morto em sua cela, enforcado com um cinto e com os seus joelhos dobrados. A sociedade brasileira nunca aceitou a versão de suicídio criada pelos militares.

Alguns anos depois, foi criado o “Prêmio Vladimir Herzog”, em sua homenagem. A premiação tem como papel ressaltar trabalhos realizados na mídia que tratam de temas relacionados aos Direitos Humanos.
Na noite do último dia 27 de setembro, na 30º edição do Prêmio, no TUCA, teatro da Pontifica Universidade Católica de São Paulo, a tradição de trazer a memória de jornalistas honrados e defensores dos direitos humanos foi marcada com a presença de Clarice, viúva, e de Ivo, filho de Vladimir Herzog.
Para Cleisla Garcia, repórter da TV Record, premiada também em 2007, na categoria “Reportagem de TV”, com a série “Guerreiras do Brasil”, a menção honrosa de 2008 pela reportagem “Camboja, reino destruído”, é uma honra. Procurei conversar com Cleisla no final da cerimônia de entrega dos prêmios quando já estava indo embora. Corri atrás dela: “Cleisla! Você está com muita pressa?” – perguntei afobado. “Estou um pouquinho. Porque?” respondeu apressada. “Tem como você me dar uma entrevista? É rapidinho.”- insisti. “Posso claro!” disse ela imediatamente. “Mas pode ser lá no lado de fora? É que eu chamei um táxi.”
Foi assim que me apresentei à repórter que esteve em Camboja, como estudante de jornalismo e admirador do seu trabalho. De primeira, perguntei a ela qual era a sensação de ter seu trabalho reconhecido desta maneira. Afinal não era a primeira vez que era premiada.
“O Herzog é um prêmio muito especial. Acho que por conta desta conotação dos Direitos Humanos, por conta da tradição, da humanidade do prêmio e principalmente pelo jornalismo que está em jogo. Ganhar um Herzog de nada tem a ver com a vaidade, é o orgulho de que você está no caminho certo. Isso não deve servir para se envaidecer, mas para você ganhar, cada vez mais, na apuração, se empenhar em temas que por mais dolorosos que sejam, tenham um ponto positivo, que sirva para alguma coisa. Acredito que, depois do Herzog, talvez eu tenha ficado mais exigente, comigo mesma.”

“E como equilibrar sentimento e frieza em coberturas que mexem com o emocional?”, questionei. “Na verdade, para você fazer qualquer coisa bem feita, você tem que acreditar no que está fazendo, depois de acreditar, você tem que se envolver. Eu não acredito em jornalismo sem envolvimento. Isso é uma opinião muito contraditória, mas eu, particularmente, acredito que a sua sensação é o que vai fazer com que quem está te assistindo acreditar naquilo. E acho que eu não tô equivocada, já que encontro nas ruas pessoas dizendo: ‘Nossa quando eu escutei a sua voz realmente achei que você se emocionou.’ Creio que a credibilidade está muito ligada a você acreditar e de alguma maneira se envolver.”
Ouvindo esta resposta imediatamente comentei sobre uma cena da série que ela recebeu o prêmio em 2007: “Foi quando você sentou em um salão de cabeleireiro infantil, e as crianças começaram a te maquiar. Ao olhar no espelho você se assustou, mas disse que estava lindo. Você transmitiu muita emoção naquele momento.” Cleisla, contou o seu método de reportagem:”Na verdade, tem muita coisa que eu faço durante a matéria que a intenção não é usar. É simplesmente ganhar a confiança das meninas, descontrair, chegar onde quer e se divertir um pouco. O resultado, às vezes, surpreende tanto que entra no ar. Nem tudo que você faz vai ser usado, mas geralmente quando o editor volta a fita na máquina, ele fala: ‘Poxa, que bacana. É isso que eu quero!’. Quando você faz com a intenção de aparecer, é diferente e o telespectador sabe. E quando é tudo muito natural, ele também percebe. Então eu acredito muito nisso.”
“E como foi fazer a reportagem no Camboja?” perguntei, curioso. “Foi muito perigoso! Entrar no Camboja de uma maneira clandestina… Fomos lá para abordar outros assuntos muito mais fáceis e acabamos fazendo uma reportagem bastante complicada sobre o tráfico de seres humanos, e, em especial, das crianças e a pedofilia. Então no Camboja todos os momentos foram tensos e por várias vezes a gente achou que não voltaria, até por isso que foi tão marcante. Até passar com as fitas no aeroporto, só podemos respirar aliviados quando chegamos na Tailândia.”
Perguntei como se deu essa infiltração no país e Cleisla explicou: “Entramos como turistas, fomos para Tailândia, e de lá pegamos um trem até a fronteira com o Camboja, descemos um pouco antes e atravessamos a pé como milhares de pessoas fazem.”
Questionada sobre a importância deste trabalho de reportagem, o que mais havia marcado a jornalista, ela nem pensou para responder: “A venda da criança! O pai vendendo a filha.” Durante a gravação da série, um pai tentou vender a própria filha por R$ 80 à equipe de reportagem da TV Record. O olhar daquela criança chocou e emocionou a todos os que assistiram o jornal naquela noite. A jornalista abraçou a menina e chorou, levando com ela, para sempre, o olhar de súplicas daquela garota, que já estava com a vida condenada.
“Para terminar qual que é a dica que você deixa para um estudante de jornalismo?”- perguntei curioso. Direta e firme, aconselhou: “Não desista! Acredite em você. E não acredite em ninguém, que não seja você mesmo.”
Não desistir? Esta é a melhor lição em uma noite que relembramos Vlado e a luta por direitos Humanos no Brasil. São nessas horas que lembro o motivo pelo qual escolhi Jornalismo. Sei que não vou conseguir mudar o mundo sozinho, mas posso contribuir um pouquinho com o meu trabalho. Creio que o Vladimir Herzog estaria muito feliz ao saber que o seu nome tem inspirado trabalhos tão humanos e belos como este de Cleisla.

Dona Benedita e os pontos de crochê de Brotas

crocheA disputa era desigual, e até mesmo injusta. O sol franzino disputava espaço no céu com um aglomerado de nuvens. Porém, mesmo com o seu intenso calor, a luz solar não conseguiu ultrapassar a grande muralha de nuvens acinzentadas da capital paulista. O que realmente chamava a atenção eram as duas maritacas que dançavam e soavam o som da vida, no meio da poluição da cidade. Foi assim que começou o penúltimo dia da décima segunda edição do Revelando São Paulo. O festival realizado no Parque da Água Branca transformou o lugar no ponto de encontro das culturas tradicionais do estado.
Diversas atrações foram oferecidas, como, comidas típicas, Folia de Reis, bonecos gigantes, violeiros, congadas, romarias, entre outras. O artesanato exibido pelas centenas de cidades apresentadas chamou a minha atenção. Eram brinquedos de madeira, panelas de barro, miniaturas, pinturas, esculturas de cipó e vime, artesões de todos os tipos e gostos.
Fui acompanhado de uma colega, e como toda mulher que se preza, ao ver uma bolsa, pára. De longe ela observou as lindas bolsas feitas de crochê. Ficou atônita quando percebeu o capricho e a qualidade com que aquele produto era feito. Enquanto olhávamos, uma senhora veio nos atender: “Vamos levar uma bolsa hoje, minha querida? Qualquer coisa estou aqui!”, proferiu ela à minha amiga. Aproveitamos, e perguntamos se dava muito trabalho fazer aquelas bolsas. Ela disse que dava sim, mas que era prazeroso. Quando me dei conta já estávamos tendo uma longa conversa. Falamos não só de artesanato, mas também de assuntos, como, política, educação, juventude e valores morais.
Dona Benedita Helena é professora aposentada da rede pública de ensino. Pequena, branca, óculos arredondados, cabelos alvos e curtos, vestia uma camiseta e uma calça preta, destacando a clareza da sua alma. “Até hoje eu trabalho! Não consigo ficar parada. Dirijo e nunca sofri um acidente”, comenta, ostentando um orgulho radiante. Aos sessenta e nove anos, caminha todos os dias e tem uma mãe de noventa e dois anos viva. “Minha mãe ainda me trata como uma criança”, disse. Fica triste ao comentar do descaso dado pelos governantes ao Revelando São Paulo. Segundo ela, no ano passado tentaram acabar com o evento, porém um abaixo assinado realizado, reuniu mais de três mil assinaturas e impediu que isso acontecesse. E ainda complementa dizendo que “não há propaganda desse lindo evento”. Porém a tristeza desaparece de seu rosto ao explicar que foi a escolhida para representar os vários artesões de Brotas.
Perguntei se com artesanato dava para ganhar dinheiro. “O artesão não trabalha por lucro. Não pode fazer conta com o lápis, tem que fazer com amor”, respondeu ela. Quando percebi, já fazia mais de uma hora que estávamos conversando, e ainda tínhamos muito para conhecer. Nos despedimos da dona Benedita, com a certeza de que logo nos encontraríamos. Afinal, além de ter tido uma enriquecedora conversa, conheci e ganhei uma amiga inesquecível.

Reencontro no Revelando São Paulo 2009

O cartunista e o universitário

              carlos-latuff

Um dos maiores medos de um estudante de jornalismo, é saber como vai se portar na frente do seu primeiro entrevistado. Infinitas indagações giram em sua mente. Será que falará corretamente? Gesticulará demais? Vou importuná-lo com as perguntas? Foi nesse estado de apreensão, e confesso, de medo, que fui atrás da minha primeira entrevista na comemoração de cinco anos do jornal Brasil de Fato. O que não faltava eram possíveis entrevistados, líderes de movimentos sociais, jornalistas conhecidos, intelectuais. Porém um nome não saía da minha mente: Carlos Latuff. Ouvi falar dele pela primeira vez no dia anterior em sala de aula, e sabia que ele estaria no evento. Latuff é cartunista, carioca, ficou conhecido pelos seus desenhos que retratam temas polêmicos, como, a questão da Palestina e a guerra do Iraque, que fazem-nos parar para refletir. O primeiro contato foi efêmero, uma breve apresentação feita por minha professora na entrada do auditório da Pontifica Universidade Católica de São Paulo, o TUCA. Ao longo do evento só o vi durante o discurso que fez no palco parabenizando o jornal: “O Brasil de Fato é o Brasil que de fato queremos”, disse. A comemoração já estava na cerimônia de encerramento, quando percebi que na poltrona da frente, sentado, Latuff observava atenciosamente cada momento. Fiquei trêmulo, não sabia como abordá-lo. Depois disso o que diria? O que perguntaria? Só sabia que aquela era uma oportunidade única, e tinha que agarrá-la. Juntamente com duas amigas, fiz a abordagem: “Carlos tem como falar com você rapidinho?”, perguntei. “Rapidinho!”, repetiu com uma breve pausa, “Rapidinho não dá. Tchau! Vão com Deus. Foi um prazer.” Concluiu apertando minha mão. Somente depois entenderia o que aconteceu naquele momento.

Fiz a primeira pergunta que passou na minha cabeça: “Por que você escolheu a imagem para expressar sua opinião?”

“Ás vezes, escrevo, mas realmente sou melhor desenhando. É um negócio que aprendi dominar desde de garoto. Acredito que a imagem chega mais. Alguma charge, um pictograma, uma placa de trânsito, mesmo que você não saiba ler, vendo aquilo se entende a mensagem. A imagem é mais direta, você consegue contar até a história da humanidade em um desenho”, respondeu.

A partir daí fiquei mais calmo e consegui fazer as perguntas que queria.

“De todos os seus trabalhos, qual você classificaria como o melhor?”

“Eu tenho uma série chamada ‘Nós somos todos palestinos’, que é uma comparação que faço com o sofrimento dos palestinos com o sofrimento de outros povos na história, como, os negros nos Estados Unidos, o apartheid na África do Sul, nessa série todos os personagens dizem ‘Eu sou palestino’. Esse foi o trabalho mais importante que fiz, mas eu posso dizer que todas as séries que fiz sobre a Palestina são importantes. É um tema tabu, ninguém quer tocar, todo mundo tem medo de ser chamado de anti sêmita, de racista, de um monte de rótulos. Quem resolve apoiar a Palestina tem que está preparado para ser esculhambado, espinafrado.”

Após viajar em 1999 a Cisjordânia, Latuff virou simpatizante pela causa dos Palestinos, destinando boa parte do seu trabalho ao tema. Outro assunto que o intriga atualmente, é a questão da dengue em seu estado natal.

“E com relação as fotos sobre a dengue no Rio de Janeiro?”

“Eu gosto muito de fotografia, acho importante a linguagem da imagem e sempre gostei de fazer ensaios fotográficos sobre temas sociais. Nesse caso em particular da dengue, eu achei tanta picaretagem, que decidi fazer fotos mostrando a situação como está, e poucas qualidades, para contextualizar como chegou nesse ponto. Não é simplesmente culpa do mosquito ou do aquecimento global, é culpa da politicagem. Você tem até hoje ‘neguinho’ discutindo de quem é a responsabilidade do mosquito, se é federal, estadual ou municipal. Enquanto isso, você vê criança descendo a sepultura com dengue, isso é esculhambação, é esculacho.”

“Mas isso nos remete ao histórico da saúde pública do Rio de Janeiro”, afirmo.

“Sim, mas é inaceitável você ver criança morrendo. Fiz esse ensaio em vários lugares, um desses lugares foi a tenda de hidratação, onde o paciente recebe soro na veia . Só tirei quatro fotos, não consegui fazer um ensaio longo, porque fiquei lá desenhando com as crianças, dando uma de Patch Adams. É muito duro você ver crianças de cinco, sete anos com o soro espetado no braço, grogue, mole de dengue. Porque? Por causa da natureza? Não! Por causa da política. Desvio de verba, menos investimento para a saúde, que advém do neoliberalismo, pois neoliberalismo é Estado mínimo, menos dinheiro para o Estado e mais dinheiro para as grandes corporações. O governo federal abriu mão do combate à dengue e passou para o governo municipal. Os carros de combate a dengue estão apodrecendo em estacionamentos, o César Maia não absorveu os mata mosquitos que haviam sido demitidos no governo FHC, que foram readmitidos por força de lei, e o secretário de saúde municipal disse que não existe epidemia. Então, com o que eu fico revoltado e indignado, é exatamente saber que essas vítimas são vítimas da política, não do mosquito. Não sei quem mata mais, se é o mosquito ou o político.”

“As suas charges sobre o Iraque são chocantes, como aquela do soldado em uma cadeira de rodas. O que você tem a dizer sobre esse trabalho?”

“Cara! Os desenhos do Iraque tem a mesma função dos desenhos sobre a Palestina e dos outros desenhos. A proposta é que o blog (http://latuff2.deviantart.com/) seja um banco de imagens subversivas, sobre o Iraque. E ele tem sido! Tem um grupo guerrilheiro que usou desenhos do blog, em revistas e panfletos deles distribuídos lá no Iraque. O guerrilheiro tá se apropriando, é como se eu estivesse dando um AK 47 para eles, munição. Eu tô colaborando através de imagens, e eles sabem a importância disso tanto que eles tem site. É uma coisa impensável de se imaginar um grupo guerrilheiro ter um site, mas eles tem, porque sabem o quanto é importante. E como sei que a imagem também é importante, eu disponibilizo tudo de reprodução livre. E isso chama a atenção de organismos de segurança, Estados Unidos, Departamento de Defesa. O Pentágono visitou o site. É evidente que eles sabem que a mensagem dos desenhos não passa em branco. Então, eles ficam monitorando, não sei pra quê. O que pode acontecer é dizer que eu faço apologia ao terrorismo e fechar o site, daí eu abro outro site.”

Latuff começou sua carreira em uma pequena agência no Rio de Janeiro em 1989, como ilustrador. Publicou sua primeira charge em um boletim do sindicato dos estivadores, no início da década de 1990, e até hoje trabalha para a mídia independente. Tem como princípio nunca dar entrevista para a grande imprensa. Com o advento da internet, iniciou sua militância artística disponibilizando seus desenhos copyleft (livre reprodução) na grande rede.

A cada resposta dada, minha curiosidade aumentava. Qual seria a formação daquele homem que possui opiniões tão sólidas sobre assuntos diversos? Ao ouvir a resposta, confesso que fiquei espantado.

“Cara! Eu tenho segundo grau.”

Então perguntei: “O que uma pessoa que cursou até o segundo grau tem a dizer para os jornalistas que estão começando?” Mais uma vez recebi uma resposta surpreendente.

“Não existe discussão quanto a você ler e aprender, isso é ponto pacifico, todo o mundo tem que fazer. Mas o problema dos jornalistas não está na questão de ler, está na questão da ética, da sensibilidade social. Teve um estudante que me perguntou assim: “Se eu te perguntar o que é melhor para você?” A pergunta não é essa. Eu tenho que pensar no que é melhor para todos. O que for melhor para todos é o melhor pra mim. E o que ó melhor para todos? Você trabalhar na Globo, na Folha, no Estadão, para sacanear os movimentos sociais, para bater no MST, nos Sem Teto? Isso pode ser bom pra mim que ganho prêmios de redação, disso, daquilo. Mas é bom para todos? Essa é a questão. Eu não sei o que vai acontecer com você no futuro. Você tem que idade?”

“Dezoito”, respondi escutando atenciosamente o que falava.

“Ainda tá cheirando a tinta. Pode ser que quando eu te encontrar daqui à dez anos você seja mais um, como pode ser que seja um revolucionário. Não sei! Mas a questão é: a minha parte eu já fiz, estou fazendo. Quando acham que tenho alguma coisa para dizer de relevante, eu paro o que tô fazendo e falo. Converso com as pessoas, divido meu trabalho, o meu pensamento, os meus sentimentos. O que elas farão com isso, eu não sei. Mas eu espero, sinceramente, que essa conversa de alguma maneira possa deixar alguma coisa dentro de você, que no futuro se reverta em ação prática.”

Depois dessa resposta, lembrei do que ele tinha dito no começo, “Rapidinho não dá. Tchau! Vão com Deus. Foi um prazer.” Só aí que entendi que, com Carlos Latuff, não tem como você falar rapidamente.

“As portas já estão fechando.” Observou fitando a saída do auditório.

“Olha Latuff! Muito obrigado.”

“De nada. Foi bom pra você?”

“Com certeza.”

“Então tá bom.”

“Nos encontraremos”, proferi lembrado do que ele tinha dito sobre quando nos reencontrarmos daqui a dez anos.

“Espero. Adorei conhecê-lo.”

5 anos da Guerra no Iraque

5 anos da Guerra no Iraque

 

“Godoy, meu querido, parabéns pela entrevista. Manteve tudo
o que disse, respeitou minhas palavras, não mudou seu
contexto. Muito grato pelo respeito.”

                             Carlos Latuff