Colaboração: Ana Paula Gomes, Marília Lino e Silvia Gonçalves
O motorista João Honorato de Carvalho morreu em janeiro de 2001, após ficar mais de dois anos na fila de espera por um rim. Sua esposa, a pensionista de 60 anos Sebastiana Félix de Carvalho falou sobre o caso. Durante a conversa, as lágrimas rolavam no rosto da viúva. Hoje, como consequência da morte do esposo, ela é depressiva e, semanalmente, faz tratamento psicológico.
Carioca, extrovertido e brincalhão, porém, genioso, esse era Carvalho. O motorista, hipertenso e anêmico, tinha aversão a médicos e não se tratou como deveria. Somente quando sua situação agravou e não aguentava mais subir escadas, se rendeu e marcou uma consulta. O médico pediu catorze exames, urgentemente, já no quinto foi diagnosticado o problema renal. “Como sou do interior, não tinha muito conhecimento sobre doenças, não pensava que o problema renal fosse tão grave, pensava que ele tinha cirrose, porque ele bebia muito. Ele ficava inchado e com uma palidez escura”, recorda a esposa.
Foto: Felipe Godoy
Recordações: pelas fotos, Sebastiana ainda lembra do marido
Carvalho começou a se tratar com o nefrologista, médico especializado em rins, e após um tempo a fazer sessões de hemodiálise – purificação do sangue realizada por um aparelho especial que funciona como um rim artificial. A filha do casal saiu do trabalho para ajudá-los. Enquanto a avó olhava o neto, ela acompanhava o pai no hospital, que ficava quatro horas na máquina de hemodiálise, três vezes por semana. Além disso, o paciente tinha que cumprir uma dieta rigorosa, formada por alimentos leves, como carne branca e legumes, e até o líquido era controlado, apenas meio copo diariamente. No entanto, devido a grande quantidade de remédios, o motorista acabava tomando mais líquido do que o permitido.
Sebastiana descobriu que era compatível e poderia doar o rim ao cônjuge, porém, quando ela realizava o penúltimo exame, Carvalho desistiu da operação, decidindo continuar na fila de espera. Segundo a esposa essa decisão foi tomada por medo, pois João tinha um amigo que recebeu o rim do irmão e depois de um ano morreu. “Vá que eu tenha rejeição. Não vai dar para tirar o rim de mim e colocar de volta em você. E você, vai ficar só com um rim?”, comentava ele na época à mulher. Entretanto, não deu para esperar. Certo dia ele começou a passar mal, pegou o automóvel, não permitiu que ninguém assumisse o volante e foi dirigindo com a cabeça para fora do carro até o hospital, juntamente com a esposa e o filho. Foi a última vez que o motorista conduziu um veículo.
Ao contrário de Carvalho, muitos brasileiros tiveram a oportunidade de receber um órgão. Dados da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, a ABTO, mostram que a taxa de doadores efetivos no terceiro trimestre de 2010, atingiu 10 doadores por milhão de população (pmp). Houve um aumento nas taxas de transplante pulmonar (17%), renal (8%), hepático (6%) e de córnea (2%) . Com relação ao transplante renal, São Paulo apresenta a maior taxa de doadores, 49,7 pmp.
De acordo com dados do Sistema Nacional de Transplantes, 63.866 pessoas estavam na fila de espera por um órgão no Brasil em 2009. Quase um quinto deste total aguardava em São Paulo. Atualmente, o programa público de transplante de órgãos e tecidos brasileiro é um dos maiores do mundo. O país conta 548 estabelecimentos de saúde credenciados, 1.376 equipes médicas autorizadas e 25 Centrais de Notificação Captação e Distribuição de Órgãos (CNCDO).
Todos os órgãos e tecidos adquiridos de um doador morto são distribuídos segundo o sistema de lista única, organizado pela Secretaria da Saúde de cada estado. Quando o órgão é captado, a CNCDO verifica se há um receptor na região, não havendo, o órgão é disponibilizado na fila nacional. Logo que um paciente é incluso na fila, ele recebe um comprovante expedido pela CNCDO e os critérios de distribuição do órgão ou tecido que ele precisa.
Segundo o presidente da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO), Ben-Hur Ferraz Neto, o número de pessoas na lista de espera por um órgão no Brasil é grande para a quantidade de doadores, contudo a situação está mudando. “A gente tem tido um aumento importante na doação de órgãos no Brasil, especialmente no estado de São Paulo. (…) No entanto, a gente precisa andar bastante. Precisa progredir muito nisso. Têm estados no país que a doação ainda é muito baixa“, disse o médico. Ele ainda explica que a fila sempre é respeitada, porém existem critérios de gravidade para cada órgão. “Existem critérios de compatibilidade de rins, critérios de gravidade no fígado e no coração. Esses critérios de gravidade quando são contemplados, colocam essa pessoa em prioridade, no primeiro lugar da fila. Mas são critérios transparentes, claros, baseados em exames. Nada é subjetivo. Tudo é objetivo. E esses critérios permitem que algum paciente seja transplantado antes do outro. (…) Outros pacientes têm um critério que chama MELD – usado como critério no transplante de fígado –, esse critério é de gravidade. Dentro de determinados exames, há posições na lista. Mas isso é baseado no que é importante, em critérios absolutamente transparentes e controlados pela Secretaria de Saúde de cada estado. Então, ninguém passa na frente de ninguém“, conclui.
Foto: Ana Paula Gomes
Ben-Hur Ferraz Neto: “a gente tem tido um aumento importante na doação de órgãos no Brasil, especialmente no estado de São Paulo”
Em outubro de 2009, o Ministério da Saúde anunciou a criação de um sistema informatizado, permitindo maior transparência na lista de espera. Neste banco de dados, os prontuários estarão sempre atualizados e os pacientes poderão consultar sua posição na lista.
A maior parte dos pacientes que aguardava por um órgão em 2009 esperava por um rim (34.640). A busca por córneas vem em segundo lugar, com 23.756 candidatos, seguida por fígado (4.304), rim e pâncreas conjugados (576), coração (305), pulmão (161) e pâncreas (124).
Em um momento durante a entrevista na casa de Sebastiana, ela se levantou e foi buscar o último cartão de natal que recebeu do marido. Nele, dizia o seguinte: “Sempre que dividimos, ganhamos; Sempre que trocamos, ganhamos; Sempre que somamos, ganhamos; Neste natal, desejo dividir, trocar, somar com vocês minhas alegrias, meus sonhos, minha fé e meu amor. Só assim diminuirão a saudade e a solidão”.
Dividir, trocar e somar, ações realizadas por quem doa seus órgãos. Talvez se mais pessoas doassem muitos “Joãos“ seriam salvos. Não esqueça, para ser um doador basta avisar à sua família do seu desejo e lembre-se que alguns órgãos podem ser doados em vida.